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Público
FTAA.soc/civ/48
11 de junho de 2002

Original: Português
 

ALCA - COMITÊ DE REPRESENTANTES GOVERNAMENTAIS SOBRE A PARTICIPAÇÃO DA
 SOCIEDADE CIVIL

CONTRIBUIÇÃO RELACIONADA COM O CONVITE PÚBLICO


Nome(s) “A multifuncionalidade da agricultura familiar” (Adriano Campolina Soares)
Organização(ões) Grupo de Trabalho de Agricultura da REBRIP
País Brasil

Rio de Janeiro, 30 de abril de 2.002.

 

Secretaría del Área de Libre Comercio de las Américas
soc@ftaa-alca.com <mailto:soc@ftaa-alca.com>

Grupo de Trabalho de Agricultura da REBRIP - Rede Internacional pela Integração dos Povos

RESUMO EXECUTIVO

 

No artigo “Multifuncionalidade da Agricultura Familiar”, seu autor, Adriano Campolina Soares, agrônomo e atualmente coordenador do departamento de campanhas e políticas públicas da Actionaid Brasil, apresenta o conceito de multifuncionalidade da agricultura, aplicando-o à análise: a) do papel desempenhado pela agricultura, em relação a outros setores da economia nacional, na trajetória recente de desenvolvimento brasileiro, b) das políticas públicas domésticas dirigidas à agricultura c) da política comercial externa brasileira e seus efeitos sobre a agricultura. O autor introduz, como objeto central de análise, a agricultura familiar, dentre os distintos setores agrícolas nacionais.

Segue-se à contextualização da origem e construção do conceito de multifuncionalidade, a identificação das funções-chave (múltiplas) da agricultura como um todo, a saber, a sua contribuição para a segurança alimentar, a sua função ambiental, a sua função econômica e social. Nesse plano, o estudo passa a concentrar-se nas múltiplas funções da agricultura familiar brasileira, demonstrando que este setor cumprem múltiplas funções para a sociedade, que vão muito além da mera produção primária. O autor conclui que o reconhecimento da multifuncionalidade da agricultura familiar por parte do governo deverá gerar uma transformação nas políticas públicas domésticas e nos posicionamentos do governo em suas negociações internacionais.

 

A multifuncionalidade da agricultura familiar

Adriano Campolina Soares1

Introdução:

O debate sobre a multifuncionalidade da agricultura ganhou notoriedade durante as negociações da organização Mundial do Comércio (OMC). Em Dezembro de 1999 ocorreu a conferência de Seattle, onde deveriam se iniciar as negociações sobre a reforma de importantes temas no comércio internacional, com destaque para agricultura e serviços. Contudo, não houve consenso entre os países membros da OMC sequer sobre a agenda sobre a qual deveria se concentrar a chamada Rodada do Milênio. Esta falta de consenso se deu em meio a grandes manifestações populares contra a OMC e seus pressupostos neoliberais que levaram às ruas de Seattle dezenas de milhares de manifestantes, duramente reprimidos pela polícia. O fracasso da conferência evidenciou diversos processos: a falta de acordo sobre a pauta de negociações comercias, a oposição popular à OMC enquanto instrumento de liberalização comercial indiscriminada e as duras críticas á própria estrutura da OMC claramente antidemocrática e sem transparência.

Foram várias as diferenças de conteúdo que levaram à impossibilidade até mesmo de uma declaração conjunta. Mas destacaram-se nesse processo as diferentes posições sobre comércio agrícola. De um lado, países exportadores de comoditties como Argentina, Austrália, Brasil, Chile, Nova Zelândia e Uruguai, que, dentre outros, compõem o chamado Grupo de Cairns, buscavam a liberalização do comércio agrícola e a remoção de barreiras comerciais na Europa, Estados Unidos e Japão aos produtos agrícolas. Em contraposição a este argumento a Comunidade Européia lançou mão da chamada multifuncionalidade da agricultura, onde argumentava que as funções múltiplas exercidas pela agricultura naquela sociedade exigiam que este setor não tivesse um tratamento meramente comercial. Evidentemente os europeus buscavam a manutenção, ainda que parcial, de seus subsídios agrícolas através do argumento da multifuncionalidade.

Em que pesem os diversos e complexos interesses que motivaram o surgimento do conceito de multifuncionalidade da agricultura nas negociações comerciais internacionais, este conceito é extremamente útil para analisarmos os papéis da agricultura no desenvolvimento brasileiro, e, sobretudo, qual tem sido o tratamento recebido pela agricultura nas políticas públicas domésticas e no posicionamento do governo brasileiro em negociações comerciais internacionais. O objetivo deste artigo é introduzir alguns elementos para esse debate, com um recorte sobre a agricultura familiar.

b) Conceitos de multifuncionalidade da agricultura:

O debate sobre multifuncionalidade da agricultura não é novo e nem começou com as discussões de Seattle. Na ECO-92, realizada no Rio de Janeiro em 1992, os governos reconheceram o “aspecto multifuncional da agricultura, particularmente com respeito à segurança alimentar e o desenvolvimento sustentável”.2 Em março de 1998 a OECD, organização que reúne os países mais ricos, declarou “além de sua função primária de produção de fibras e alimentos, a atividade agrícola pode também moldar a paisagem, prover benefícios ambientais tais como conservação dos solos, gestão sustentável dos recursos naturais renováveis e preservação da biodiversidade e contribuir para a viabilidade sócio econômica em várias áreas rurais ... Agricultura é multifuncional quando tem uma ou várias funções adicionadas ao seu papel primário de produção de fibras e alimentos”.3

Segundo ALDINGTON, o conceito do caráter multifuncional da agricultura e da terra é derivado do conceito de agricultura e desenvolvimento rural sustentável (ADRS). Este último é resultado das reflexões da FAO, e outras instituições nas décadas de 1970 e 1980 a respeito da evolução da agricultura e sua relação com a segurança alimentar, produtividade e sustentabilidade.4

O conceito de agricultura e desenvolvimento rural sustentável, no contexto de instituições como a FAO, poder ser resumido como um desenvolvimento sustentável que conserva o solo, a água, os recursos genéticos vegetais e animais, não degrada o meio ambiente, e é tecnicamente apropriado, economicamente viável e socialmente aceitável. O conceito de multifuncionalidade viria a ampliar esta abordagem, através dos seguintes maneiras:

  • Ampliando o alcance para incluir os serviços prestados pela agricultura para a sociedade em geral;

  • Estabelecendo um marco para a valorização das compensações mútuas e sinergias entre as diferentes funções da agricultura e o correspondente uso da terra;

  • Examinando as relações dinâmicas entre as zonas urbanas e rurais em diferentes escalas;

  • Incorporando toda a gama mundial de situações, desde as sociedades predominantes rurais, onde a produção primária de alimentos e outras mercadorias é prioridade, até as nações altamente industrializadas, com uma pequena população rural e import6ancia da produção primária igualmente modesta.5

Enfim, o conceito de multifuncionalidade, nesta abordagem, é um instrumento para se analisar a importância dos sistemas agrícolas e suas relações com outros setores da economia.

Em paper apresentado à OMC a Noruega classificou os bens gerados pela agricultura em bens privados e públicos, da seguinte forma6:

AGRICULTURA MULTIFUNCIONAL
Bens Privados Bens Públicos
Alimentos e fibras Segurança alimentar de longo prazo Paisagem agrícola
Agro-turismo Viabilidade Rural Diversidade Agrobiológica
Outros produtos comerciais Herança cultural Saúde fitossinatária
  Conservação do solo Outros bens públicos

Com o conceito de multifuncionalidade a análise da agricultura e das políticas públicas que afetam a agricultura (inclusive a comercial), deve ser feita sobre todos os aspectos e ou funções da agricultura.

c) As funções múltiplas da agricultura e as diferentes agriculturas.


Na discussão do conceito de multifuncionalidade identificam-se as seguintes funções chave da agricultura:

Contribuição à segurança alimentar;

Função ambiental;

Função Econômica

Função Social.

Evidentemente que os diferentes setores da agricultura desempenham cada uma destas funções de uma maneira distinta. Desta forma a utilização deste conceito sem a devida diferenciação sobre qual agricultura estamos falando, pode levar a uma uniformização tal que pouco contribui para analisarmos criticamente o desenvolvimento da agricultura.

A contribuição para a segurança alimentar exercida por uma comunidade de agricultores familiares, ou um assentamento de reforma agrária é consideravelmente distinta da contribuição de uma grande propriedade patronal especializada no monocultivo de soja para o mercado externo. Da mesma maneira, os impactos ambientais de um policultivo tradicional são muito diferentes dos impactos da monocultura mecanizada e altamente dependente de insumos químicos. Em relação às funções social e econômica as diferenças entre diferentes modelos de uso da terra são ainda mais óbvias.

Dessa forma, este interessante instrumento de análise deve ser contextualizado à nossa realidade de um setor agrícola fortemente desigual, onde um enorme fosso separa as realidades da agricultura familiar e da agricultura patronal. Isto significa dizer que as múltiplas funções da agricultura não são comuns ao conjunto da agricultura e que os serviços prestados à sociedade também são distintos, sendo, em alguns casos até antagônicos.

Em função desta realidade é que analisaremos as múltiplas funções de um setor da agricultura brasileira: a agricultura familiar. Com este recorte, nos parece que a discussão sobre o conceito de multifuncionalidade pode ser muito útil para compreender melhor a evolução da agricultura familiar, seu papel no desenvolvimento da sociedade brasileira e, principalmente, analisar criticamente de que maneira as políticas públicas se relacionam com as múltiplas funções da agricultura familiar brasileira.

d) Agricultura familiar e segurança alimentar.

No processo de elaboração do documento brasileiro para a Cúpula Mundial da Alimentação representantes do governo e sociedade civil chegaram à seguinte definição: segurança alimentar e nutricional significa garantir a todos o acesso a alimentos básicos de qualidade, em quantidade suficiente, de modo permanente e sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, com base em práticas alimentares saudáveis. Contribuindo, assim, para uma existência digna, em um contexto de desenvolvimento integral da pessoa humana.

A agricultura familiar estabelece várias relações com a segurança alimentar. A mais lembrada é como provedora de alimentos para a sociedade. Contudo, se analisarmos os dados do mapa da fome, elaborado pelo IPEA em 1993, veremos que cerca de 50% dos 32 milhões de brasileiros da população abaixo da linha da pobreza vivem no campo. Grande parte desta população rural empobrecida é composta de agricultores e agricultoras familiares excluídos.

Conforme o Censo de Agropecuário 1996, existem no Brasil 4.139.369 estabelecimentos rurais familiares (segundo a metodologia utilizada por INCRA/FAO), ocupando uma área de 107,8 milhões de hectares. Por outro lado, há 554.501 estabelecimentos patronais, ocupando uma área de 240.milhões de hectares. Os agricultores familiares representam 85,5% do total de estabelecimentos, ocupam 30,5% da área e são responsáveis por 37,9% do Valor Bruto da Produção Agropecuária Nacional (VPB), apesar de receberem apenas 23,5% do financiamento destinado agricultura7.

Em relação à produção de alimentos propriamente dita vejamos alguns exemplos, baseados no Censo de 1985: tanto em relação à quantidade quanto em relação ao valor, é predominantemente familiar a produção de mandioca e milho nas regiões Norte, Nordeste e Sul e também de arroz no caso do Nordeste. Pelo critério da quantidade, a agricultura familiar é também predominante na produção de leite e aves, no sul e aves no Norte, no Nordeste. Considerando-se somente o valor da produção, é predominantemente familiar a produção de feijão no Norte e no Sul. Em suma, pode-se afirmar que nas regiões Norte e Nordeste e sul a produção de base familiar , de grãos básicos e aves tende a predominar, enquanto no Sudeste e Centro Oeste a situação é mais favorável para a agricultura patronal8.

Com base no Censo de 1995/96, os agricultores familiares produzem 24% do VPB da pecuária de corte, 54% da pecuária de leite, 58% dos suínos, 40% das aves e ovos, 33% do algodão, 72% da cebola, 67% do feijão, 97% do fumo, 84% da mandioca, 49% do milho, 32% da soja, 46% do trigo, 58% da banana e 25% do café.9

A dimensão da importância da agricultura familiar para a produção de alimentos fica ainda mais nítida quando observamos que 55% da população brasileira em condição de indigência vive no Nordeste, sendo que 63% da população rural em condição de indigência vive no Nordeste. Por outro lado, importantes componentes da dieta da população excluída, como mandioca e arroz (no caso do NE), são produzidas justamente pela agricultura familiar.

A importância da agricultura familiar para segurança alimentar vai além da produção primária. Sua característica de distribuição de renda e geração de empregos possibilita que milhões de pessoas tenham condições de acessar os alimentos.

Mas é bom salientar que grande parte da insegurança alimentar do Brasil provém da inviabilização da agricultura familiar. O descaso histórico com esse setor da agricultura, seja através da falta de financiamento adequado, falta de infra-estrutura de produção e comercialização, ausência de políticas públicas de saúde e educação, leva a saída acelerada de agricultores do campo para a cidade. Somente dois anos de Plano Real foram suficientes, por exemplo, para expulsar do campo 400.000 agricultores familiares. Diversos outros permanecem em situação de extrema pobreza.

Enfim, é estratégico o papel desempenhado pela agricultura familiar para segurança alimentar. Tanto pelo lado da produção de alimentos quanto pelo efeito distribuidor de renda deste setor da agricultura, criando condições para o acesso ao alimento. Ao se elaborar e executar políticas públicas, inclusive a política comercial, deve-se levar em conta também esta função. Ou seja, ao reduzir unilateralmente as tarifas de um produto (como o governo fez centenas de vezes), deve-se avaliar qual sua consequência não apenas de curto prazo, mas também de longo prazo caso se desestruture setores inteiros da agricultura familiar.

 

e) Agricultura familiar e a função ambiental.

A agricultura é uma das atividades com maior impacto sobre o meio ambiente. Os sistemas agrários ocupam cerca de 45% da superfície total dos ecossistemas brasileiros10. Há inúmeros exemplos de impactos negativos da agricultura, especialmente do modelo de agricultura da chamada revolução verde: substituição das florestas por monocultivos, erosão de solos ( e assoreamento de rios e lagos), contaminação de águas e alimentos com agroquímicos, desequilíbrios na população de insetos e plantas silvestres, etc.

Contudo, a agricultura pode prover uma conjunto de serviços ambientais como a conservação de solos e águas, manejo sustentável da biodiversidade, produção de biomassa, etc., cujo valor para as gerações presentes e futuras é incalculável. Mais uma vez, as políticas públicas têm profundo efeito sobre qual o modelo de agricultura se adota.

No Brasil, por exemplo, uma série de políticas públicas, desde a pesquisa agropecuária, à extensão rural e crédito rural atrelado ao pacote tecnológico, moldaram o presente modelo altamente devastador, na década de 70. No momento presenciamos um conjunto de interesses econômicos mais uma vez moldar nossas políticas públicas em relação aos transgênicos, cujos potenciais impactos ambientais são igualmente graves.

A agricultura familiar tem um papel ímpar no que se refere à função ambiental da agricultura. Por diversas razões a agricultura familiar tem melhores condições para um desenvolvimento sustentável do ponto de vista ambiental:

  • “seu funcionamento econômico não se fundamenta na maximização da rentabilidade do capital e na geração do lucro a curto prazo, mas está orientado para o atendimento das necessidade da família e para a manutenção a longo prazo das potencialidades produtivas do meio natural, percebido como um patrimônio familiar;
     

  • por sua própria vocação de unidade de produção e consumo, a agricultura familiar valoriza a diversidade , através de policultivos e criações, distribuídos de forma equilibrada no tempo e espaço;
     

  • a unidade de produção familiar, quer por sua extensão quer pela forma de organização do trabalho, favorece maiores cuidados técnicos nas operações de manejo, na medida em que aquele que tomas as decisões é também o que as coloca em prática;
     

  • enraizada em um meio físico conhecido e sob controle, a agricultura familiar mantém uma relação positiva com o território, o que se revela, sobretudo, na capacidade de valorizar as potencialidades próprias aos ecossistemas naturais em que está inserida, inscrevendo estas potencialidades em suas estratégias de reprodução econômica.”11

A função ambiental é um bem público que a agricultura familiar produz para a sociedade (e tem potencial de produzir muito mais se converter seu modelo de produção em direção à agroecologia). Contudo, ao se debater o financiamento agrícola, o governo mantém algumas normas que praticamente obrigam o agricultor a usar o máximo possível de pesticidas. Ao mesmo tempo, ao se discutir as condições de financiamento, o governo exige a inclusão de juros mais correção monetária usando o argumento de que o crédito rural deve se balizar pelo mercado... Entretanto, os serviços ambientais, assim como os sociais e os relativos à segurança alimentar vão muito além do privado!

A compensação pelos serviços ambientais além de justa é necessária. Afinal, todo o potencial ambiental da agricultura familiar se compromete quando a falta de uma componente do sistemas põe a perder o equilíbrio. Isto vale para a falta de terra, falta de renda, etc. E quando o sistema se desestabiliza, a lógica da sobrevivência empurra o agricultor para a exaurir aquele ambiente.

f) A agricultura familiar e a função econômica.

Agricultura continua sendo fundamental para o crescimento da economia mesmo em países majoritariamente urbanizados, como o Brasil. A agricultura familiar responde por uma parte importante desta contribuição. Como já dissemos, apesar, de ocupar somente 30,5% da área e receber somente 25,3% do financiamento da produção, a agricultura familiar é responsável por 37,9% do Valor Bruto da Produção Agropecuária Nacional, isto corresponde a R$ 18,1 bilhões.12 Nas regiões Norte e Sul mais de 50% do VPB é produzido em estabelecimentos familiares.

Segundo o estudo do INCRA/FAO “A Renda Total por hectare demonstra que a agricultura familiar é muito mais eficiente que a patronal, produzindo uma média de R$ 104,00/ha/ano contra apenas R$ 44,00 ha/ano pelos agricultores familiares”.13 Esta maior eficiência ocorre em todas as regiões.

Apesar da maior eficiência econômica, o financiamento agrícola não corresponde sequer à parte do VBP produzido pela agricultura familiar. Obviamente, o financiamento rural no Brasil continua sendo privilégio da agricultura patronal, que além de socialmente injusta e concentradora de terra e renda é economicamente ineficiente!

 

g) A agricultura familiar e a função social.

Os movimentos sociais costumam rechaçar, com razão, o posicionamento do governo de encarar a agricultura familiar como “política social compensatória”. Quando se fala de função social no conceito de multifuncionalidade isto vai muito além desse tipo de políticas.

Muitas zonas rurais, especialmente as comunidades de agricultores familiares, pescadores artesanais e extrativistas, estão associadas aos conceitos de cultura, tradição e identidade. O atual fluxo de informações vem transformando aceleradamente algumas destas comunidades. Nesta perspectiva é interessante a adoção de olhar mais amplo, que leve em conta inclusive o impacto das políticas públicas sobre a sociedade nos aspectos culturais. Trata-se de buscar um olhar que não seja exclusivamente baseado na produção.

A viabilidade social da agricultura familiar não depende somente da produção, mas há um conjunto de fatores sociais, como educação, cultura, lazer, saúde, etc. que podem ser tão determinantes quanto o econômico na determinação da viabilidade.

Outro fator fundamental ao se utilizar este enfoque mais amplo é a reflexão sobre os diferentes impactos das políticas públicas em diferentes grupos da mesma comunidade (homens, mulheres, jovens, idosos, etc.). Ao se debater a função social da agricultura devemos, mais uma vez, repetir a necessidade de se contextualizar à realidade de desigualdade da sociedade brasileira. Por exemplo, a Renda Média por estabelecimento familiar no Brasil, com base no Censo 1995/96 (segundo a classificação do INCRA/FAO), foi de R$ 2.217,00. Já os estabelecimentos patronais apresentaram a Renda Média de R$ 19.085,00 anuais14, ou seja, cerca de 9 vezes superior.

Evidentemente não podemos falar de função social da agricultura para dois grupos tão distintos. É sabido, por exemplo, que o setor patronal rural é um dos piores empregadores do país, a ponto de 70% dos assalariados rurais brasileiros sequer terem registro em carteira. Os casos de trabalho forçado são recorrentes, enfim o patronato rural desrespeita de forma contumaz os direitos socais e trabalhistas dos assalariados rurais, além de gerarem pouco emprego.

“A agricultura familiar é a principal geradora de postos de trabalho no meio rural brasileiro. Mesmo dispondo de 30 % da área, é responsável por 76,9% do pessoal ocupado (...) Entre os agricultores patronais são necessários em média 67,5 ha para ocupar um pessoa, enquanto entre os familiares são necessários 7,8 ha para ocupar uma pessoa.”15 (naturalmente, pessoal ocupado inclui a mão de obra familiar)

Enfim, políticas públicas desenhadas somente pelo olhar do mercado, podem ignorar desde valores culturais intangíveis até a geração de emprego e renda.

Multifuncionalidade em disputa

Embora os países europeus venham buscando o reconhecimento da multifuncionalidade nas regras multilaterais de comércio com um objetivo claro de justificar a perpetuação de seus altos subsídios, o conceito está em disputa.

Como vimos, a agricultura familiar brasileira cumpre múltiplas funções para sociedade, indo muito além da mera produção primária. O reconhecimento da multifuncionalidade da agricultura familiar pode significar que seu tratamento não pode ser unicamente comercial, ou de mercado. A agricultura familiar provê um conjunto de serviços e bens públicos, tangíveis e intangíveis, de elevado valor para a sociedade em geral. Os meros instrumentos de mercado não são suficientes para dar conta da complexidade do desenvolvimento da agricultura familiar, em seus diversos aspectos.

Este reconhecimento das funções múltiplas da agricultura familiar pode implicar em transformações nas políticas públicas domésticas e nos posicionamentos do governo em negociações internacionais. No caso das políticas públicas domésticas, a multifuncionalidade pode servir de instrumento de análise a ser utilizado na avaliação de alternativas de políticas públicas de forma a refletir sobre seus impactos nas diferentes funções e nas relações entre elas. Mais além do que instrumento analítico, o reconhecimento desta multifuncionalidade tem a implicação política de transformação das políticas públicas para agricultura familiar. O financiamento da agricultura familiar, por exemplo, não pode ser submetido a condições simplesmente de mercado. Deve-se buscar formas e condições de financiamento que dêem conta da diversidade de funções deste setor. O conjunto de bens e serviços prestados pela agricultura familiar justificam plenamente que este setor seja subsidiado efetivamente pela sociedade. Naturalmente não estamos falando dos ínfimos subsídios da equalização de juros do PRONAF, que chegam à beira do ridículo se comparados às somas de subsídios agrícolas europeus e norte-americanos. O papel desempenhado pela agricultura familiar na sociedade brasileira justifica a destinação de valores muito superiores aos atuais para este setor.

As políticas de pesquisa agropecuária, além da dimensão da produção, precisam ser revistas para responder a demandas apresentadas por outras funções, como a ambiental, por exemplo. Desta maneira, o conjunto das políticas públicas que afetam a agricultura familiar, desde o financiamento da produção, política de preços (atualmente praticamente inexistente), políticas de educação e saúde, etc., devem ser revistas no sentido de analisar em que medida contribuem para garantir as melhores condições para o exercício das múltiplas funções da agricultura familiar.

A política brasileira de comércio agrícola internacional necessita bem mais que a ampliação de seu enfoque para dar conta da complexidade de nossa agricultura. Na realidade, os tomadores de decisão da política comercial agrícola parecem ignorar solenemente a existência deste setor. Pelo menos é isso que se pode entender das posições brasileiras na OMC e na ALCA. O governo tem uma política comercial “de uma nota só”, ou seja quer maior acesso ao mercado europeu e norte americano para alguns produtos brasileiros como soja, suco de laranja, café, açúcar, etc. Não por acaso, é exatamente aí que reside o interesse da agricultura patronal. Para atingir este objetivo o governo está preparado até mesmo para uma nova redução tarifária, como afirmou o Ministro Luiz Felipe Lampréia em audiência pública na Câmara dos Deputados prévia à conferência de Seattle. Ou seja, o governo está disposto a liberalizar ainda mais o setor agrícola sem antes sequer avaliar quais foram as consequência da última onda de liberalização em termos de queda de renda do setor, inviabilização de centenas de milhares de estabelecimentos familiares, etc. Apesar de existirem alguns setores da agricultura familiar envolvidos com exportação, é óbvio que o posicionamento internacional do governo está balizado pelos interesses do patronato agroexportador, muitas vezes com graves consequências para o conjunto da agricultura familiar. A inclusão dos interesses deste setor na agenda internacional brasileira, inclusive no que se refere às suas múltiplas funções é uma tarefa árdua. Na realidade, isto só será possível na medida em que a sociedade civil, especialmente os movimentos sociais no campo, como CUT, CONTAG, MST, MPA e outros incluírem esta temática do comércio internacional em sua agendas. Enquanto isso, o governo segue negociando acordos agrícolas mundo afora (atualmente OMC e ALCA), acordos esses que futuramente poderão ser utilizados como argumento para o não atendimento de demandas de políticas domésticas.

Quanto à posição européia de multifuncionalidade, cabem alguns comentários. Seu posicionamento em defesa do reconhecimento do caráter multifuncional da agricultura na OMC tem como objetivo, na realidade a manutenção da chamada caixa azul (que permite alguns pagamentos diretos dos governos aos agricultores), e a continuidade da cláusula de paz e das salvaguardas especiais. Estes instrumentos, na prática, permitiram que os países desenvolvidos mantivessem seus elevados subsídios e seu protecionismo, levando muitas vezes à depressão internacional dos preços agrícolas. Talvez falte incluir no conceito europeu de multifuncionalidade a função internacional, ou seja os impactos de sua política agrícola em países em desenvolvimento quando, através de subsídios, se mantém os preços agrícolas europeus abaixo do mercado mundial, se promove a superprodução ou se utiliza de subsídios á exportação.

Enfim, se a demanda européia por multifuncionalidade é sincera a União Européia deve reconhecer e respeitar a multifuncionalidade da agricultura dos países em desenvolvimento. Isto significa o apoio a EU a regras mais flexíveis para os países em desenvolvimento no Acordo Agrícola da OMC, eliminação dos subsídios à exportação e outras formas de dumping, a cláusula de paz e o uso da salvaguardas especiais pelos países desenvolvidos, se comprometer a reduzir os pagamento da caixa azul, e, ter um posicionamento multifuncional também em outros temas relacionados à agricultura, como o TRIPS (capítulo da OMC que estabelece normas sobre propriedade intelectual, como patentes e outras).

Em conclusão, podemos afirmar que a agricultura familiar exerce múltiplas funções estratégicas para sociedade e que isto deve ser reconhecido e traduzido em políticas públicas adequados. O conceito de multifuncionalidade, nesta abordagem, é útil para o fortalecimento deste ator social, a agricultura familiar. A discussão sobre as múltiplas funções da agricultura, não pode, entretanto, ignorar a profunda desigualdade existente tanto no campo quanto no cenário internacional. Isto significa que não podemos tratar como iguais as diferentes funções da agricultura familiar e da agricultura patronal e muito menos as diferentes funções da agricultura européia e da agricultura brasileira.


1 Agrônomo, coordenador de campanhas da ActionAid Brasil

2 Agenda 21, capítulo 14.

3 OECD - Declaration of Agricultural Ministers Committee. 1998

4 Aldington, T.J. Multifunctional Agriculture: A Brief Review from Developed and Developing Country Perspectives, FAO 1998.

5 Idem

6 Paper from Norway, 1999 (WTO-AIE/68)

7 INCRA/FAO Novo Retrato da Agricultura Familiar: O Brasil Redescoberto. Brasília, 1999.

8 INCRA/FAO Perfil da Agricultura Familiar no Brasil: dossiê estatístico. Brasília, 1996.

9 INCRA/FAO Novo Retrato da Agricultura Familiar: O Brasil Redescoberto. Brasília, 1999.

10 Codeiro, A; Petersen, P e Almeida S; Crise sócio-ambiental e conversão ecológica da agricultura brasileira: subsídios à formulação de diretrizes ambientais para o desenvolvimento agrícola. Rio de Janeiro, 1996 mimeo.

11 Idem

12 INCRA/FAO Novo Retrato da Agricultura Familiar: O Brasil Redescoberto. Brasília, 1999.

13 Idem

14 Idem

15 Idem
 

               

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